Dissertações espíritas - Da origem da linguagem

Revista Espírita - novembro de 1862


(Sociedade Espírita de Paris. - Médium, Sr. d'Ambel.)

    Hoje me pedis, caros e bem amados ouvintes, para ditar, ao meu médium, a história da origem da linguagem; vou tratar de vos satisfazer; mas devereis compreender que me será impossível, em algumas linhas, tratar inteiramente esta séria questão, à qual se liga, forçosamente, a mais importante ainda da origem das raças humanas.

    Que Deus todo-poderoso, tão benevolente para os Espíritas, conceda-me a lucidez necessária para podar, de minha dissertação, toda confusão, toda obscuridade e, sobretudo, todo erro.

    Entro na matéria vos dizendo: Admitamos primeiro em princípio esta eterna verdade: é que o Criador deu a todos os seres da mesma raça um modo especial, mas seguro, para se entenderem e se compreenderem entre eles. No entanto, esse modo de comunicação, essa linguagem foi tanto mais restrita quanto as espécies eram mais inferiores. É em virtude dessa verdade, dessa lei que os selvagens e as populações pouco civilizadas têm línguas de tal modo pobres, que uma multidão de termos usados nos países favorecidos pela civilização, ali não encontram nenhuma palavra correspondente; e é para obedecer a essa mesma lei que essas nações que progridem criam novas expressões para novas descobertas, para novas necessidades.

    Assim como já disse em outro lugar: a Humanidade já atravessou três grandes períodos: a fase bárbara, a fase hebraica e paga e a fase cristã. A esta última sucederá o grande período espírita, do qual lançamos no presente, entre vós, os primeiros assentamentos.

    Examinemos, pois, a primeira fase e os começos da segunda, e não posso senão repetir aqui o que já disse. A primeira fase humana, que se pode chamar ante-hebraica ou bárbara, se arrasta lenta e longamente em todos os horrores e convulsões de uma horrível barbárie. O homem nela é peludo como a fera animal e se escondia nas cavernas e nos bosques. Vivia de carne crua e se repastava de seu semelhante como de um excelente animal de caça. É o reino da antropofagia mais absoluta. Nada de sociedade! nada de família! Alguns grupos dispersos aqui e ali, vivendo desordenadamente uma promiscuidade completa e sempre prontos a se entre devorarem: tal é o quadro desse cruel período. Nenhum culto, nenhuma tradição, nenhuma ideia religiosa! Nada mais que as necessidades animais a satisfazer, e depois é tudo! A alma, prisioneira numa matéria entorpecida, permanece morna e latente em sua prisão carnal; nada pode contra as paredes grosseiras que a encerram, e sua inteligência pode se mover com dificuldade nos compartimentos de um cérebro limitado. O olhar é terno, a pálpebra pesada, o lábio é espesso o crânio achatado, e alguns sons guturais bastam à linguagem; nada faz pressagiar que desse animal bruto sairá o pai das raças hebraicas e pagas. No entanto, com o tempo, sentem a necessidade de se sustentarem contra os outros carniceiros, contra o leão e o tigre, cujos caninos temíveis e cujas garras cortantes tinham facilmente vencido os homens isolados: é assim que se cumpre o primeiro progresso social. No entanto, o reino da matéria e da força bruta se manteve durante toda essa fase cruel. Não procureis, pois, no homem dessa época nem sentimento, nem razão, nem linguagem propriamente dita; ele não obedece senão à sua grosseira sensação e não tem senão um objetivo: beber, comer e dormir; fora disso, nada! Pode-se dizer que o homem inteligente nele está em germe, mas que não existe ainda. Entretanto, é necessário constatar que já, entre essas raças brutais, aparecem alguns seres superiores, Espíritos encarnados, encarregados de conduzir a Humanidade para seu objetivo e apressar o advento da era hebraica e paga. Devo acrescentar que fora desses Espíritos encarnados, o globo terrestre era frequentemente visitado por esses ministros de Deus, cuja tradição consagrou a memória sob o nome de anjos e arcanjos, e que estes se punham quase que diariamente em relação com os seres superiores, Espíritos encarnados dos quais acabo de falar. A missão de alguns desses anjos continuou durante uma grande parte da segunda fase humanitária. Devo acrescentar que o quadro rápido que acabo de fazer, dos primeiros tempos da Humanidade, vos ensina, mais ou menos, a que leis rigorosas estão submetidos os Espíritos que ensaiam a vida nos planetas de formação recente.

    A linguagem propriamente dita, como ávida social, não começa a ter um caráter certo senão a partir da era hebraica e paga, durante a qual o Espírito encarnado, sempre escravizado à matéria, começa, no entanto, a se revoltar e quebrar alguns anéis da sua pesada corrente. A alma fermenta e se agita em sua prisão carnal; por seus esforços reiterados ela reage energicamente contra as paredes do cérebro, do qual ela sensibiliza a matéria; melhora e aperfeiçoa, por um trabalho constante, o jogo de suas faculdades das quais, consequentemente, os órgãos físicos se desenvolvem; enfim, o pensamento se deixa ler num olhar límpido e claro. Estamos já longe das frontes achatadas! É que a alma se sente, ela se reconhece, tem a consciência de si mesma, e começa a compreender que é independente do corpo. Também, desde esse momento, ela luta com ardor para se desembaraçar dos apertos de sua robusta rival. O homem se modifica cada vez mais e a inteligência se move mais livremente num cérebro mais desenvolvido. Constatamos, no entanto, que essa época vê ainda o homem encurralado e matriculado como o gado, o homem escravo do homem; a escravidão está consagrada pelo Deus dos Hebreus tanto quanto pelos deuses pagãos, e Jeová, tanto como Júpiter Olímpico, pede sangue e vítimas vivas.

    Essa segunda fase oferece aspectos curiosos do ponto de vista filosófico; dela já tracei um quadro rápido que meu médium vos comunicará proximamente. O que quer que seja, e para retornar ao assunto deste estudo, tende por certo que não foi senão na época dos grandes períodos pastorais e patriarcais que a linguagem humana tomou um passo regular, e adotou formas e sons especiais. Então nessa época primitiva em que a Humanidade se desembaraça dos cueiros do berço, ao mesmo tempo que da gaguez da primeira idade, poucas palavras bastam aos homens para quem a ciência não havia nascido, cujas necessidades eram muito restritas, e cujas relações sociais se detinham às portas da tenda, no limiar da família, e mais tarde nos limites da tribo. É a época em que o pai, o pastor, o ancião, o patriarca, numa palavra, dominava como senhor absoluto com direito de vida e de morte.

    A língua primitiva foi uniforme; mas à medida que o número dos pastores cresceu, estes, deixando por sua vez a tenda paterna, foram fundar, nas regiões inabitadas, novas famílias, novas tribos. Então a língua usada entre eles se afastou, degrau por degrau, segundo as gerações, da linguagem em uso sob a tenda paternal que tinham deixado outrora; e foi assim que os idiomas diversos foram criados. De resto, embora minha intenção não seja fazer um curso de linguística, não estais sem ter notado que, nas línguas mais discordantes, encontrais palavras cujo radical pouco variou e cuja significação é quase a mesma. Por outro lado, se bem que tendes hoje a pretensão de ser um velho mundo, a mesma razão que fez corromper a língua primitiva, reina ainda soberanamente em vossa França tão orgulhosa de sua civilização, onde vedes as concordâncias, os termos e a significação variada, não diria de província em província, mas de comunidade a comunidade. Para isso chamo àqueles que viajaram para a Bretagne, como àqueles que percorreram a Provence e o Languedoc. É uma variedade de idiomas e dialetos de assustar aquele que quisesse coligi-los num único dicionário.

    Uma vez que os homens primitivos, ajudados nisso pelos missionários do Eterno, tenham afetado a certos sons especiais certas ideias especiais, a língua falada se encontrou criada, e as modificações que ela sofreu mais tarde foram em razão dos progressos humanos; por consequência, segundo a riqueza de uma língua, pode se estabelecer facilmente o grau de civilização ao qual chegou o povo que a fala. O que posso acrescentaria que a Humanidade caminha para uma língua única, consequência forçada de uma comunidade de ideias em moral, em política, e sobretudo em religião. Tal será a obra da filosofia nova, o Espiritismo, que vos ensinamos hoje.

ERASTO.


Revista Espírita 1862

Allan Kardec


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