Francisco Cândido Xavier |
Pelo Espírito Neio Lúcio |
Parte 04 |
|
31 - A
razão da dor |
|
32 - A
fé vitoriosa |
|
33 - O
apelo divino |
|
36 - O problema difícil |
|
37 - O
filho ocioso |
|
38 - O
argumento justo |
|
39 - O
poder das trevas |
|
Topo da página - Índice - Home Page
Raquel,
antiga servidora da residência de Cusa, ergueu a voz para indagar do Mestre por que
motivo a dor se convertia em aflição nos caminhos do mundo.
Não era
o homem criação de Deus? Não dispõe a criatura do abençoado concurso dos anjos? Não
vela o Céu sobre os destinos da Humanidade?
Jesus
fitou na interlocutora o olhar firme e considerou:
A
razão da dor humana procede da proteção divina. Os povos são famílias de Deus que, à
maneira de grandes rebanhos, são chamados ao Aprisco do Alto. A Terra é o caminho. A
luta que ensina e edifica é a marcha. O sofrimento é sempre o aguilhão que desperta as
ovelhas distraídas à margem da senda verdadeira.
Alguns
instantes se escoaram mudos e o Mestre voltou a ponderar:
O
excesso de poder favorece o abuso, a demasia de conforto, não raro, traz o relaxamento, e
o pão que se amontoa, de sobra, costuma servir de pasto aos vermes que se alegram no
mofo...
Reparando,
porém, que a assembléia de amigos lhe reclamava explicação mais ampla, elucidou
fraternalmente:
Um anjo, por ordem do Eterno Pai, tomou à própria conta um homem comum, desde o
nascimento. Ensinou-lhe a alimentar-se, a mover os membros e os músculos, a sorrir, a
repousar e a asilar-se nos braços maternos. Sem afastar-se do protegido, dia e noite,
deu-lhe as primeiras lições da palavra e, em seguida, orientou-lhe os impulsos novos,
favorecendo-lhe o ensejo de aprender a raciocinar, a ler, a escrever e a contar.
Afastava-o, hora a hora, de influências perniciosas ou mortíferas de Espíritos
infelizes que o arrebatariam, por certo para o sorvedouro da morte. Soprando-lhe ao
pensamento idéias iluminadas aos clarões do Infinito Bem, através de mil modos de
socorro imperceptível, garantiu-lhe a saúde e o equilíbrio do corpo. Dava-lhe
medicamentos invisíveis, por intermédio do ar e da água, da vestimenta e das plantas.
Vezes sem conta, salvou-o do erro, do crime e dos males sem remédio que atormentam os
pecadores. Ao amanhecer, o Pajem Celestial acorria, atento, preparando-lhe dia calmo e
proveitoso, defendendo-lhe a respiração, a alimentação e o pensamento, vigiando-lhe os
passos, com amor, para melhor preservar-lhe os dons; ao anoitecer, postava-se-lhe à
cabeceira, amparando-lhe o corpo contra o ataque de gênios infernais, aguardando-o, com
maternal cuidado, para as doces instruções espirituais nos momentos de sono. No
transcurso da vida, guiou-lhe os ideais, auxiliou-o a selecionar as emoções e a
situar-se em trabalho digno e respeitável; clareou-lhe o cérebro jovem, insuflou-lhe
entusiasmo santo, rumo à vida superior, e estimulou-o a formar um reino de santificação
e serviço, progresso e aperfeiçoamento, num lar... O homem, todavia, que nunca se
lembrara de agradecer as bênçãos que o cercavam, fez-se orgulhoso e cruel, diante dos
interesses alheios. Ele, que retinha tamanhas graças do Céu, jamais se animou a
estendê-las na Terra e passou simplesmente a humilhar os outros com a glória de que fora
revestido por seu devotado e invisível benfeitor. Quando experimentou o primeiro
desgosto, que ele mesmo provocou menosprezando a lei do amor universal, que determina a
fraternidade e o respeito aos semelhantes, gesticulou, revoltado, contra o Céu, acusando
o Supremo Senhor de injusto e indiferente. Aflito, o anjo guardião procurava levantar-lhe
o ideal de bondade, quando um Anjo Maior se aproximou dele e ordenou que o primeiro
dissabor do tutelado endurecido por excesso de regalias se convertesse
Finda a
historieta, esperou Jesus que Raquel expusesse alguma dúvida, mas emudecendo a servidora,
dominada pela meditação que os ensinamentos da noite lhe sugeriam, o culto da Boa Nova
foi encerrado com ardente oração de júbilo indefinível.
Topo da página - Índice - Home Page
Destacava
André certas dificuldades na expansão dos novos princípios redentores de que o Mestre
se fazia emissário e se referia aos fariseus com amargura violenta, concitando os
companheiros à resistência organizada. Jesus, porém, que ouvia com imperturbável
tolerância a argumentação veemente, asseverou tão logo se estabeleceu o silêncio:
Nenhuma escola religiosa triunfará com o Pai, ausentando-se do amor que nos cabe cultivar
uns para com os outros.
E talvez
porque se manifestasse justificada expectativa em torno dos apólogos que a sua divina
palavra sabia tecer, contou, muito calmo:
Na época da fé selvagem, três homens primitivos com as suas famílias se localizaram em
vasta floresta e, findo algum tempo de convívio fraternal, passaram a discutir sobre a
natureza do Criador. Um deles pretendia que o Todo-Poderoso vivia no trovão, outro
acreditava que o Pai residisse no vento e o terceiro, que Ele morasse no Sol. Todos se
sentiam filhos dEle, mas queriam à viva força a preponderância individual nos
pontos de vista.
Depois
de ásperas altercações, guerrearam abertamente.
Um dos
três se munira de pesada carga de minério, outro reuniu grande acervo de pedras e o
último se ocultara por trás de compacto monte de madeira. Achas de lenha e rudes calhaus
eram as armas do grande conflito.
Invocam
todos a proteção do Supremo Senhor para os seus núcleos familiares e empenhavam-se
O
mensageiro visitou-lhes o reduto, na forma de um homem vulgar, e, longe de retirar-lhes os
instrumentos com que destruíam a vida, afirmou que os patrimônios de que dispunham eram
todos preciosos entre si, elucidando-os tão-somente de que necessitavam imprimir nova
direção às atividades
O Mestre
fez pequena pausa e aduziu:
Em matéria religiosa, cada crente possui razões respeitáveis e detém preciosas
possibilidades que devem ser aproveitadas no engrandecimento da vida e do tempo,
glorificando o Pai. Quando a criatura, porém, guarda a bênção do Céu e nada realiza
de bom, em favor dos semelhantes e a benefício de si mesma, assemelha-se ao avarento que
se precipita no inferno da sede e da fome, no intuito de esconder, indebitamente, a
riqueza que Deus lhe emprestou. Por isto mesmo, a fé que não ajuda, não instrui e nem
consola, não passa de escura vaidade do coração. Pesado silêncio desceu sobre todos e
André baixou os olhos tímidos, para melhor fixar a mensagem de luz.
Topo da página - Índice - Home Page
Reunidos
os componentes habituais do grupo doméstico, o Senhor, de olhos melancólicos e lúcidos,
surpreendendo, talvez, alguma nota de oculta revolta no coração dos ouvintes, falou,
sublime:
Amados, quem procura o Sol do Reino Divino há de armar-se de amor para vencer na grande
batalha da luz contra as trevas. E para armazenar o amor no coração é indispensável
ampliar as fontes da piedade.
Compadeçamo-nos
dos príncipes; quem se eleva muito alto, sem apoio seguro, pode experimentar a queda em
desfiladeiros tenebrosos.
Ajudemos
aos escravos; quem se encontra nos espinheiros do vale pode perder-se na inconformação,
antes de subir a montanha redentora.
Auxiliemos
a criança; a erva tenra pode ser crestada, antes do sol do meio-dia.
Amparemos
o velhinho; nem sempre a noite aparece abençoada de estrelas.
Estendamos
mãos fraternas ao criminoso da estrada; o remorso é um vulcão devastador.
Ajudemos
aquele que nos parece irrepreensível; há uma justiça infalível, acima dos círculos
humanos, e nem sempre quem morre santificado aos olhos das criaturas surge santificado no
Céu.
Amparemos
quem ensina; os mestres são torturados pelas próprias lições que transmitem aos
outros.
Socorramos
aquele que aprende; o discípulo que estuda sem proveito, adquire pesada responsabilidade
diante do Eterno.
Fortaleçamos
quem é bom; na Terra, a ameaça do desânimo paira sobre todos.
Ajudemos
o mau; o espírito endurecido pode fazer-se perverso.
Lembremo-nos
dos aflitos, abraçando-os, fraternalmente; a dor, quando incompreendida, transforma-se em
fogueira de angústia.
Auxiliemos
as pessoas felizes; a tempestade costuma surpreender com a morte os viajores desavisados.
A saúde
reclama cooperação para não arruinar-se.
A
enfermidade precisa remédio para extinguir-se.
A
administração pede socorro para não desmandar-se.
A
obediência exige concurso amigo para subtrair-se ao desespero.
Enquanto
o Reino do Senhor não brilhar no coração e na consciência das criaturas, a Terra será
uma escola para os bons, um purgatório para os maus e um hospital doloroso para os
doentes de toda sorte.
Sem a
lâmpada acesa da compaixão fraternal, é impossível atender à Vontade Divina.
O
primeiro passo da perfeição é o entendimento com o auxílio justo...
Interrompeu-se
o Mestre, ante os companheiros emudecidos.
E porque
os ouvintes se conservassem calados, de olhos marejados de pranto, Ele voltou à palavra,
em prece, e suplicou ao Pai luz e socorro, paz e esclarecimento para ricos e pobres,
senhores e escravos, sábios e ignorantes, bons e maus, grandes e pequenos...
Quando
terminou a rogativa, as brisas do lago se agitaram, harmoniosas e brandas, como se a
Natureza as colocasse em movimento na direção do Céu para conduzirem a súplica de
Jesus ao Trono do Pai, além das estrelas...
Topo da página - Índice - Home Page
Ante as
exclamações de Dalila, a esposa de Azor, o tecelão, quanto às maldades de alguns
publicanos de mau nome que a haviam desrespeitado, em praça pública, justamente quando
procurava praticar o bem, relatou Jesus, com simplicidade:
Piedosa mulher, desejando ser mensageira do Reino Divino na Terra, bateu às portas do
Paraíso, rogando trabalho.
Foi
atendida, cuidadosamente, por um anjo que lhe recomendou visitasse uma taberna para salvar
dois homens bons, desprevenidos, que se haviam deixado embriagar, dominados por
insinuações insufladas por Espíritos das trevas.
No dia
seguinte, porém, a enviada reapareceu, chorosa, explicando ao Ministro do Eterno que lhe
não fora possível satisfazer-lhe à determinação, porque o recanto indicado jazia
repleto de jogadores a trocarem palavras obscenas e cruéis.
O anjo,
então, mandou-a a um esconderijo em floresta próxima, a fim de socorrer uma criança
desamparada.
No outro
dia, porém, a emissária regressou, alegando que não lhe fora exeqüível o trabalho
porque a furna ocultava vários homens e mulheres seminus a lhe ferirem o pudor feminino.
O
Administrador Celeste, sem desanimar, designou-a para auxiliar uma senhora agonizante,
mas, decorridas poucas horas, a colaboradora voltou, ruborizada, ao ponto de origem,
informando de que não pudera nem mesmo penetrar o quarto da enferma, porque na
antecâmara o esposo da doente, palestrando com certa mulher de baixa procedência,
projetava um assassínio para a noite próxima.
O
prestimoso Ministro do Alto, embora com algum desapontamento, determinou-lhe o auxílio a
dois homens dementes situados em extenso vale de imundos.
No dia
imediato, a serva escandalizada retornava, célere, esclarecendo que não conseguira
alcançar o objetivo, porquanto os loucos viviam impressionados com cenas de vida impura,
a lhe causarem extrema repugnância.
O
Preposto do Altíssimo, depois de ouvi-la com manifesta estranheza, pediu-lhe amparar uma
jovem que se achava em perigo, mas, em breve, regressava a cooperadora sensitiva,
exclamando que a criatura mencionada podia ser vista numa festa desregrada, em repulsiva
condição moral.
E assim
a candidata ao trabalho celeste atravessou a semana, inutilmente, cultivando a
ineficiência, sob variados pretextos.
Todavia,
procurando de novo o anjo para solicitar-lhe serviço, dele ouviu a exortação de que se
fizera merecedora:
Minha irmã, continue, por enquanto, desenvolvendo o seu esforço nas vulgaridades da
Terra.
Oh! e por quê? indagou, perplexa. Não mereço abeirar-me da vida mais
alta?
Seus olhos estão cheios de malícia elucidou o Ministro, tolerante , e, para
servir ao Senhor, o servo do bem retifica o escândalo, com amor e silêncio, sem se
escandalizar.
Calou-se
o Mestre por minutos longos; depois, concluiu sem afetação:
Quem se demora na contemplação do mal, não está em condições de fazer o bem.
Os
circunstantes entreolharam-se, espantadiços, e a oração final do culto doméstico foi
pronunciada, enquanto, lá fora, a Lua muito alva, desfazendo a treva noturna, simbolizava
radioso convite do Céu ao sublime combate pela vitória da luz.
35 - A necessidade de entendimento
Topo da página - Índice - Home Page
Um dos
companheiros trazia ao culto evangélico enorme expressão de abatimento.
Ante as
indagações fraternas do Senhor, esclareceu que fora rudemente tratado na via pública.
Vários devedores, por ele convidados a pagamento, responderam com ingratidão e
grosseria.
Não se
internou o Cristo através da consolação individual, mas, exortando evidentemente todos
os companheiros, narrou, benevolente:
Um grande explicador dos textos de Job possuía singulares disposições para os serviços
da compreensão e da bondade, e, talvez por isso, organizou uma escola em que pontificava
com indiscutível sabedoria.
Amparando,
certa ocasião, um aprendiz irrequieto que freqüentes vezes se lamuriava de maus tratos
que recebia na praça pública, saiu pacientemente em companhia do discípulo, pelas ruas
de Jerusalém, implorando esmolas para determinados serviços do Templo.
A
maioria dos transeuntes dava ou negava, com indiferença, mas, numa esquina movimentada,
um homem vigoroso respondeu-lhes à rogativa com aspereza e zombaria.
O mestre
tomou o aprendiz pela mão e ambos o seguiram, cuidadosos. Não andaram muito tempo e
viram-no cair ao solo, ralado de dor violenta, provocando o socorro geral. Verificaram, em
breve, que o irmão irritado sofria de cólicas mortais.
Demandaram
adiante, quando foram defrontados por um cavalheiro que nem se dignou responder-lhes à
súplica, endereçando-lhes tão-somente um olhar rancoroso e duro.
Orientador
e tutelado acompanharam-lhe os passos, e, quando a estranha personagem alcançou o
domicílio que lhe era próprio, repararam que compacto grupo de pessoas chorosas o
aguardava, grupo esse ao qual se uniu em copioso pranto, informando-se os dois de que o
infeliz retinha no lar uma filha morta.
Prosseguiram
esmolando na via pública e, a estreito passo, receberam fortes palavrões de um rapaz a
quem se haviam dirigido. Retraíram-se ambos, em expectativa, verificando, depois de meia
hora de observação, que o mísero não passava de um louco.
Em
seguida, ouviram atrevidas frases de um velho que lhes prometia prisão e pedradas; mas,
decorridas algumas horas, souberam que o infortunado era simplesmente um negociante
falido, que se convertera de senhor em escravo, em razão de débitos enormes.
Como o
dia declinasse, o respeitável instrutor convocou o discípulo ao regresso e ponderou:
Guardaste a lição? Aceita a necessidade do entendimento por sagrado imperativo da vida.
Nunca mais te queixes daqueles que exibem expressões de revolta ou desespero nas ruas. O
primeiro que nos surgiu à frente era enfermo vulgar; o segundo guardava a morte em casa;
o terceiro padecia loucura e o quarto experimentava a falência. Na maioria dos casos,
quem nos recebe de mau-humor permanece em estrada muito mais escura e mais espinhosa que a
nossa.
E,
completando o ensinamento, terminou o Senhor, diante dos companheiros espantados:
Quando encontrarmos os portadores da aflição, tenhamos piedade e auxiliemo-los na
reconquista da paz íntima. O touro retém os chifres, por não haver atingido, ainda, o
dom das asas. Reclamamos, comumente, contra a ovelha que nos perturba o repouso, balindo,
atormentada; todavia, raramente nos lembramos de que o pobre animal vai seguindo, sob
laço pesado, a caminho do matadouro.
Topo da página - Índice - Home Page
Entre os
comentários da noite, um dos companheiros mostrou-se interessado em conhecer a questão
mais difícil de resolver, nos serviços referentes à procura da Luz Divina.
Em que
setor da luta espiritual se colocaria o mais complicado problema?
Depois
de assinalar variadas considerações, ao redor do assunto, o Mestre fixou no semblante
uma atitude profundamente compreensiva e contou:
Um grande sábio possuía três filhos jovens, inteligentes e consagrados à sabedoria.
Em certa
manhã, eles altercavam a propósito do obstáculo mais difícil de vencer no grande
caminho da vida.
No auge
da discussão, prevendo talvez conseqüências desagradáveis, o genitor benevolente
chamou-os a si e confiou-lhes curiosa tarefa.
Iriam os
três ao palácio do príncipe governante, conduzindo algumas dádivas que muito lhes
honraria o espírito de cordialidade e gentileza.
O
primeiro seria o portador de rico vaso de argila preciosa.
O
segundo levaria uma corça rara.
O
terceiro transportaria um bolo primoroso da família.
O trio
fraterno recebeu a missão com entusiástica promessa de serviço para a pequena viagem de
três milhas; no entanto, a meio do caminho, principiaram a discutir.
O
depositário do vaso não concordou com a maneira pela qual o irmão puxava a corça
delicada, e o responsável pelo animal dava instruções ao carregador do bolo, a fim de
que não tropeçasse, perdendo o manjar; este último aconselhava o portador do vaso
valioso, para que não caísse.
O
pequeno séquito seguia, estrada afora, dificilmente, porquanto cada viajor permanecia
atento a obrigações que diziam respeito aos outros, através de observações acaloradas
e incessantes.
Em dado
momento, o irmão que conduzia o animalzinho olvida a própria tarefa, a fim de consertar
a posição da peça de argila nos braços do companheiro, e o vaso, premido pelas
inquietações de ambos, escorrega, de súbito, para espatifar-se no cascalho poeirento.
Com o
choque, o distraído orientador da corça perde o governo do animal, que foge espantado,
abrigando-se em floresta próxima.
O
carregador do bolo avança para sustar-lhe a fuga, internando-se pelo mato a dentro, e o
conteúdo de prateada bandeja se perde totalmente no chão.
Desapontados
e irritadiços, os três rapazes tornam à presença paterna, apresentando cada qual a sua
queixa e a sua derrota.
O
sábio, porém, sorriu e explicou-lhes:
Aproveitem o ensinamento da estrada. Se cada um de vocês estivesse vigilante na própria
tarefa, não colheriam as sombras do fracasso. O mais intrincado problema do mundo, meus
filhos, é o de cada homem cuidar dos próprios negócios, sem intrometer-se nas
atividades alheias. Enquanto cogitamos de responsabilidades que competem aos outros, as
nossas viverão esquecidas.
Jesus
calou-se, pensativo, e uma prece de amor e reconhecimento completou a lição.
Topo da página - Índice - Home Page
Reportava-se
a pequena assembléia a variados problemas da fé em Deus, quando Jesus, tomando a
palavra, narrou, complacente:
Um grande Soberano possuía vastos domínios. Terras, rios, fazendas, pomares e rebanhos
eram incontáveis em seu reino prodigioso. Vassalos inúmeros serviam-lhe a casa, em todas
as direções. Alguns deles nunca se perdiam dos olhos do Senhor, de maneira absoluta. De
tempos a tempos, visitavam-lhe a residência, ofereciam-lhe préstimos ou traziam-lhe
flores de ternura, recebendo novos roteiros de trabalho edificante. Outros, porém, viviam
a bel-prazer nas florestas imensas. Estimavam a liberdade plena com declarada
indisciplina. Eram verdadeiros perturbadores do vasto império, porquanto, ao invés de
ajudarem a Natureza, desprezavam-na sem comiseração. Matavam animais pelo simples gosto
da caça, envenenavam as águas para assassinarem os peixes em massa, perseguiam as aves
ou queimavam as plantações dos servos fiéis, não obstante saberem, no íntimo, que
deviam obediência ao Poderoso Senhor.
Um
desses servidores levianos e ociosos não regateava sua crença na existência e na
bondade do Rei. Depois de longas aventuras na mata, exterminando aves indefesas, quando o
estômago jazia farto, costumava comentar a fé que depositava no rico Proprietário de
extenso e valioso domínio. Um Soberano tão previdente quanto aquele que soubera dispor
das águas e das terras, das árvores e dos rebanhos, devia ser muito sábio e justiceiro
explanava consciente. Sutilmente, todavia, escapava-lhe a todos os decretos.
Pretendia viver a seu modo, sem qualquer imposição, mesmo daquele que lhe confiara o
vale em que consumia a existência regalada e feliz.
Decorridos
muitos anos, quando as suas mãos já não conseguiam erguer a menor das armas para
perturbar a Natureza, quando os olhos embaciados não mais enxergavam a paisagem com a
mesma clareza da juventude, inclinando-se-lhe o corpo, cansado e triste, para o solo,
resolveu procurar o Senhor, a fim de pedir-lhe proteção e arrimo.
Atravessou
lindos campos, nos quais os servos leais, operosos e felizes, cultivavam o chão da
propriedade imensa e chegou ao iluminado domicílio do Soberano.
Experimentando
aflitivo assombro, reparou que os guardas do limiar não lhe permitiam o suspirado
ingresso, porque seu nome não constava no livro de servidores ativos.
Implorou,
rogou, gemeu; no entanto, uma das sentinelas lhe observou:
O
tempo disponível do Rei é consagrado aos cooperadores.
Como assim? bradou o trabalhador imprevidente. Eu sempre acreditei na
soberania e na bondade do nosso glorioso ordenador...
O
guarda, contudo, redargüiu, sem pestanejar:
Que te adiantava semelhante convicção, se fugiste aos decretos de nosso Soberano,
gastando precioso tempo em perturbar-lhe as obras? O teu passado está vivo em tua
própria condição... Em que te servia a confiança no Senhor, se nunca vieste a Ele,
trazendo um minuto de colaboração a benefício de todos? Observa-se, logo, que a tua
crença era simples meio de acomodar a consciência com os próprios desvarios do
coração.
E o
servo, já comprometido pelos atos menos dignos, e de saúde arruinada, foi constrangido a
começar toda a sua tarefa, de novo, de maneira a regenerar-se.
O Mestre
calou-se, durante alguns momentos, e concluiu:
Aqui temos a imagem de todo ocioso filho de Deus. O homem válido e inteligente que admite
a existência do Eterno Pai, que lhe conhece o poder, a justiça e a bondade, através da
própria expressão física da Natureza, e que não o visita em simples oração, de
quando em quando, nem lhe honra as leis com o mínimo gesto de amparo aos semelhantes, sem
o mais leve traço de interesse nos propósitos do Grande Soberano, poderá retirar alguma
vantagem de suas convicções inúteis e mortas?
Com essa
indagação que calou nos ouvidos dos presentes, o culto evangélico da noite foi
expressivamente encerrado.
Topo da página - Índice - Home Page
À
noite, em casa de Simão, transparecia um véu de tristeza na maioria dos semblantes.
Tadeu e
André, atacados horas antes, nas margens do lago, por alguns malfeitores, viram-se
constrangidos à reação apressada. Não surgira conseqüência grave, mas sentiam-se
ambos atormentados e irritadiços.
Quando
Jesus começou a falar acerca da glória reservada aos bons, os dois discípulos deixaram
transparecer, através do pranto discreto, a amargura que lhes dominava a alma e, não
podendo conter-se, Tadeu clamou, aflito:
Senhor, aspiro sinceramente a servir à Boa Nova; contudo, sou portador de um coração
indisciplinado e ingrato. Ouço, contrito, as explanações do Evangelho; lá fora,
porém, no trato com o mundo, não passo de um espírito renitente no mal. Lamento...
lamento... mas como trabalhar em favor da Humanidade nestas condições?
Embargando-se-lhe
a voz, adiantou-se André, alegando, choroso:
Mestre, que será de mim? Ao seu lado, sou a ovelha obediente; entretanto, ao
distanciar-me... basta uma palavra insignificante de incompreensão para desarmar-me.
Reconheço-me incapaz de tolerar o insulto ou a pedrada. Será justo prosseguir, ensinando
aos outros a prática do bem, imperfeito e mau qual me vejo?!...
Calando-se
André, interferiu Pedro, considerando:
Por minha vez, observo que não passo de mísero espírito endividado e inferior. Sou o
pior de todos. Cada noite, ao me retirar para as orações habituais, espanto-me diante da
coragem louca dentro da qual venho abraçando os atuais compromissos. Minha fragilidade é
grande, meus débitos enormes. Como servir aos princípios sublimes do Novo Reino, se me
encontro assim insuficiente e incompleto?
À
palavra de Pedro, juntou-se a de Tiago, filho de Alfeu, que asseverou, abatido:
Na intimidade de minha própria consciência, reparo quão longe me encontro da Boa Nova,
verdadeiramente aplicada. Muita vez, depois de reconfortar-me ante as dissertações do
Mestre, recolho-me ao quarto solitário, para sondar o abismo de minhas faltas. Há
momentos em que pavorosas desilusões me tomam de improviso. Serei na realidade um
discípulo sincero? Não estarei enganando o próximo? Tortura-me a incerteza... Quem sabe
se não passo de reles mistificador?
Outras
vozes se fizeram ouvir no cenáculo, desalentadas e cheias de amargura.
Jesus,
porém, após assinalar as opiniões ali enunciadas, entre o desânimo e o desapontamento,
sorriu, tocado de bom-humor, e esclareceu:
Em verdade, o paraíso que sonhamos ainda vem muito longe e não vejo aqui nenhum
companheiro alado. A meu parecer, os anjos, na indumentária celeste, ainda não encontram
domicílio no chão áspero e escuro em que pisamos. Somos aprendizes do bem, a caminho do
Pai, e não devemos menoscabar a bendita oportunidade de crescer para Ele, no mesmo
impulso da videira que se eleva para o céu, depois de nascer no obscuro seio da terra,
alastrando-se compassiva, para transformar-se em vinho reconfortante, destinado à alegria
de todos. Mas, se vocês se declaram fracos, devedores, endurecidos e maus e não são os
primeiros a trabalhar para se fazerem fortes, redimidos, dedicados e bons em favor da obra
geral de salvação, não me parece que os anjos devam descer da glória dos Cimos para
substituir-nos no campo de lições da Terra. O remédio, antes de tudo, se dirige ao
doente, o ensino ao ignorante... De outro modo, penso, a Boa Nova de Salvação se
perderia por inadequada e inútil...
As
lágrimas dos discípulos transformaram-se em intenso rubor, a irradiar-se da fisionomia
de todos, e uma oração sentida do Amigo Divino imprimiu ponto final ao assunto.
Topo da página - Índice - Home Page
Centralizando-se
a palestra no estudo das tentações, contou Jesus, sorridente:
Um valoroso servidor do Pai movimentava-se, galhardamente, em populosa cidade de
pecadores, com tamanho devotamento à fé e à caridade, que os Espíritos do Mal se
impacientaram em contemplando tanta abnegação e desprendimento. Depois de lhe armarem os
mais perigosos laços, sem resultado, enviaram um representante ao Gênio da Trevas, a fim
de ouvi-lo a respeito.
Um
companheiro de consciência enegrecida recebeu a incumbência e partiu.
O Grande
Adversário escutou o caso, atenciosamente, e recomendou ao Diabo Menor que apresentasse
sugestões.
O
subordinado falou, com ênfase:
Não poderíamos despojá-lo de todos os bens?
Isto,
não disse o perverso orientador ; para um servo dessa têmpera a perda dos
recursos materiais é libertação. Encontraria, assim, mil meios diferentes para aumentar
suas contribuições à Humanidade.
Então, castigar-lhe-emos a família, dispersando-a e constrangendo-lhe os filhos a
enchê-lo de opróbrio e ingratidão... aventou o pequeno perturbador,
reticencioso.
O
perseguidor maior, no entanto, emitiu gargalhada franca e objetou:
Não vês que, desse modo, se integraria facilmente com a família total que é a
multidão?
O
embaixador, desapontado, acentuou:
Será talvez conveniente lhe flagelemos o corpo; crivá-lo-emos de feridas e aflições.
Nada disto acrescentou o gênio satânico , ele acharia meios de afervorar-se
na confiança e aproveitaria o ensejo para provocar a renovação íntima de muita gente,
pelo exercício da paciência e da serenidade na dor.
Movimentaremos a calúnia, a suspeita e o ódio gratuito dos outros contra ele!
clamou o emissário.
Para quê? tornou o Espírito das Sombras. Transformar-se-ia num mártir,
redentor de muitos. Valer-se-ia de toda perseguição para melhor engrandecer-se, diante
do Céu.
Exasperado,
agora, o demônio menor aduziu:
Será, enfim, mais aconselhável que o assassinemos sem piedade...
Que dizes? redargüiu a Inteligência perversa A morte ser-lhe-ia a mais
doce bênção por reconduzi-lo às claridades do Paraíso.
E vendo
que o aprendiz vencido se calava, humilde, o Adversário Maior fez expressivo movimento de
olhos e aconselhou, loquaz:
Não sejas tolo. Volta e dize a esse homem que ele é um zero na Criação, que não passa
de mesquinho verme desconhecido... Impõe-lhe o conhecimento da própria pequenez, a fim
de que jamais se engrandeça, e verás...
O
enviado regressou satisfeito e pôs em prática o método recebido.
Rodeou o
valente servidor com pensamentos de desvalia, acerca de sua pretendida insignificância e
desfechou-lhe perguntas mentais como estas: como te atreves a admitir algum valor em
tuas obras destinadas ao pó? Não te sentes simples joguete de paixões inferiores da
carne? Não te envergonhas da animalidade que trazes no ser? Que pode um grão de areia
perdido no deserto? Não te reconheces na posição de obscuro fragmento de lama?
O
valoroso colaborador interrompeu as atividades que lhe diziam respeito e, depois de
escutar longamente as perigosas insinuações, olvidou que a oliveira frondosa começa no
grelo frágil e deitou-se, desalentado, no leito do desânimo e da humilhação, para
despertar somente na hora em que a morte lhe descortinava o infinito da vida.
Silenciou
Jesus, contemplando a noite calma...
Simão
Pedro pronunciou uma prece sentida e os apóstolos, em companhia dos demais, se
despediram, nessa noite, cismarentos e espantadiços.
Topo da página - Índice - Home Page
Diante
da noite, refrescada de brisas cariciantes, Filipe, da mãos calejadas, falou das
angústias que lhe povoavam a alma, com tanta emotividade e amargura que aflitivas notas
de dor empolgaram a assembléia. E interpelado pelo respeitoso carinho de Pedro, que
voltou a tanger o problema das tentações, o Mestre contou, pausadamente:
O
Senhor, Nosso Pai, precisou de pequeno grupo de servidores numa cidade revoltada e
dissoluta e, para isso, localizou no centro dela uma família de cinco pessoas, pai, mãe
e três filhos que o amavam e lhe honravam as leis sábias e justas.
Aí
situados, os felizes colaboradores começaram por servi-lo, brilhantemente.
Fundaram
ativo núcleo de caridade e fé transformadora que valia por avançada sementeira de vida
celeste; e tanto se salientaram na devoção e na prática da bondade que o Espírito das
Trevas passou a mover-lhes guerra tenaz.
A
princípio, flagelou-os com os morcegos da maledicência; todavia, os servos sinceros se
uniram na tolerância e venceram.
Espalhou
ao redor deles, logo após, as sombras da pobreza; contudo, os trabalhadores dedicados se
congregaram no serviço incessante e superaram as dificuldades.
Em
seguida, atormentou-os com as serpentes da calúnia; entretanto, os heróis desconhecidos
fizeram construtivo silêncio e derrotaram o escuro perseguidor.
Depois
de semelhantes ataques, o Gênio Satânico modificou as normas de ação e enviou-lhes os
demônios da vaidade, que revestiram os servos fiéis do Senhor de vastas considerações
sociais, como se houvessem galgado os pináculos do poder de um momento para outro;
entretanto, os cooperadores previdentes se fizeram mais humildes e atribuíam toda a
glória que os visitava ao Pai que está nos Céus.
Foi
então que os seres escarninhos e perversos encheram-lhes a casa de preciosidades e
dinheiro, de modo a entorpecer-lhes a capacidade de trabalhar; mas o conjunto amoroso,
robustecido na confiança e na prece, recebia moedas e dádivas, passando-as para diante,
a serviço dos desalentados e dos aflitos.
Exasperado,
o Espírito das Trevas mandou-lhes, então, o Demônio da Tristeza que, muito de leve,
alcançou a mente do chefe da heróica família e disse-lhe, solene:
És um homem, não um anjo... Não te envergonhas, pois, de falar tão insistentemente no
Senhor, quando conheces, de perto, as próprias imperfeições? Busca, antes de tudo,
sentir a extensão de tuas fraquezas na carne!... Chora teus erros, faze penitência
perante o Eterno! Clama tuas culpas, tuas culpas!...
Registrando
a advertência, o infeliz alarmou-se, esqueceu-se de que o homem só pode ser útil à
grandeza do Pai, através do próprio trabalho na execução dos celestes desígnios e,
entristecendo-se profundamente, acreditou-se culpado e criminoso para sempre, de maneira
irremediável. Desde o instante em que admitiu a incapacidade de reerguimento, recusou a
alimentação do corpo, deitou-se e, decorridos alguns dias, morreu de pesar.
Vendo-o
desaparecer, sob compacta onda de lamentações e lágrimas, a esposa seguiu-lhe os
passos, oprimida de inominável angústia, e os filhos, dentro de algumas semanas,
trilharam a mesma rota.
E assim
o venenoso antagonista venceu os denodados colaboradores da crença e do amor, um a um,
sem necessidade de outra arma que não fosse pequena sugestão de tristeza.
Interrompeu-se
a palavra do Mestre, por longos instantes, mas nenhum dos presentes ousou intervir no
assunto.
Sentindo,
assim, que os companheiros preferiam guardar silêncio, o Divino Amigo concluiu
expressivamente:
Enquanto um homem possui recursos para trabalhar e servir com os pés, com as mãos, com o
sentimento e com a inteligência, a tristeza destrutiva em torno dele não é mais que a
visita ameaçadora do Gênio das Trevas em sua guerra desventurada e persistente contra a
luz.