CAPÍTULO XII
AMAI OS VOSSOS INIMIGOS
Retribuir o mal com o bem. - Os inimigos desencarnados - Se alguém
vos bater na face direita, apresentai-lhe também a outra. - Instruções dos
Espíritos: A vingança. - O ódio. - O duelo.
1. Aprendestes
que foi dito: Amareis o vosso próximo e odiareis os vossos inimigos. Eu,
porém, vos digo: Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e orai
pelos que vos perseguem e caluniam, a fim de serdes filhos do vosso Pai que está nos
céus e que faz se levante o Sol para os bons e para os maus e que chova sobre os justos e
os injustos. - Porque, se só amardes os que vos amam, qual será a vossa recompensa? Não
procedem assim também os publicanos? Se apenas os vossos irmãos saudardes, que é o que
com isso fazeis mais do que os outros? Não fazem outro tanto os pagãos? (S.
MATEUS, cap. V, vv.
-
Digo-vos que, se a vossa justiça não for mais abundante que a dos escribas e dos
fariseus, não entrareis no reino dos céus.(S. MATEUS, cap. V, v. 20.)
2. Se
somente amardes os que vos amam, que mérito se vos reconhecerá, uma vez que as pessoas
de má vida também amam os que os amam? - Se o bem somente o fizerdes aos que vo-lo
fazem, que mérito se vos reconhecerá, dado que o mesmo faz a gente de má vida? - Se só
emprestardes àqueles de quem possais esperar o mesmo favor, que mérito se vos
reconhecerá, quando as pessoas de má vida se entreajudam dessa maneira, para auferir a
mesma vantagem? Pelo que vos toca, amai os vossos inimigos, fazei bem a todos e
auxiliai sem esperar coisa alguma. Então, muito grande será a vossa recompensa e
sereis filhos do Altíssimo, que é bom para os ingratos e até para os maus. - Sede,
pois, cheios de misericórdia, como cheio de misericórdia é o vosso Deus. (S.
LUCAS, cap. VI, vv.
3. Se o amor
do próximo constitui o princípio da caridade, amar os inimigos é a mais sublime
aplicação desse princípio, porquanto a posse de tal virtude representa uma das maiores
vitórias alcançadas contra o egoísmo e o orgulho.
Entretanto,
há geralmente equívoco no tocante ao sentido da palavra amar, neste passo. Não
pretendeu Jesus, assim falando, que cada um de nós tenha para com o seu inimigo a ternura
que dispensa a um irmão ou amigo. A ternura pressupõe confiança; ora, ninguém pode
depositar confiança numa pessoa, sabendo que esta lhe quer mal; ninguém pode ter para
com ela expansões de amizade, sabendo-a capaz de abusar dessa atitude. Entre pessoas que
desconfiam umas das outras, não pode haver essas manifestações de simpatia que existem
entre as que comungam nas mesmas idéias. Enfim, ninguém pode sentir, em estar com um
inimigo, prazer igual ao que sente na companhia de um amigo.
A diversidade
na maneira de sentir, nessas duas circunstâncias diferentes, resulta mesmo de uma lei
física: a da assimilação e da repulsão dos fluidos. O pensamento malévolo determina
uma corrente fluídica que impressiona penosamente. O pensamento benévolo nos envolve num
agradável eflúvio. Daí a diferença das sensações que se experimenta à aproximação
de um amigo ou de um inimigo. Amar os inimigos não pode, pois, significar que não se
deva estabelecer diferença alguma entre eles e os amigos. Se este preceito parece de
difícil prática, impossível mesmo, é apenas por entender-se falsamente que ele manda
se dê no coração, assim ao amigo, como ao inimigo, o mesmo lugar. Uma vez que a pobreza
da linguagem humana obriga a que nos sirvamos do mesmo termo para exprimir matizes
diversos de um sentimento, à razão cabe estabelecer as diferenças, conforme aos casos.
Amar os
inimigos não é, portanto, ter-lhes uma afeição que não está na natureza, visto que o
contacto de um inimigo nos faz bater o coração de modo muito diverso do seu bater, ao
contacto de um amigo. Amar os Inimigos é não lhes guardar ódio, nem rancor, nem desejos
de vingança; é perdoar-lhes, sem pensamento oculto e sem condições, o mal que
nos causem; é não opor nenhum obstáculo a reconciliação com eles; é desejar-lhes o
bem e não o mal; é experimentar júbilo, em vez de pesar, com o bem que lhes advenha; é
socorrê-los, em se apresentando ocasião; é abster-se, quer por palavras, quer por
atos, de tudo o que os possa prejudicar; é, finalmente, retribuir-lhes sempre o mal
com o bem, sem a intenção de os humilhar. Quem assim procede preenche as
condições do mandamento: Amai os vossos inimigos.
4. Amar os
inimigos é, para o incrédulo, um contra-senso. Aquele para quem a vida presente é tudo,
vê no seu inimigo um ser nocivo, que lhe perturba o repouso e do qual unicamente a morte.
pensa ele, o pode livrar. Daí, o desejo de vingar-se. Nenhum interesse tem em perdoar,
senão para satisfazer o seu orgulho perante o mundo. Em certos casos, perdoar-lhe parece
mesmo uma fraqueza indigna de si. Se não se vingar, nem por isso deixará de conservar
rancor e secreto desejo de mal para o outro.
Para o crente
e, sobretudo, para o espírita, muito diversa é a maneira de ver, porque suas vistas se
lançam sobre o passado e sobre o futuro, entre os quais a vida atual não passa de um
simples ponto. Sabe ele que, pela mesma destinação da Terra, deve esperar topar aí com
homens maus e perversos; que as maldades com que se defronta fazem parte das provas que
lhe cumpre suportar e o elevado ponto de vista em que se coloca lhe torna menos amargas as
vicissitudes, quer advenham dos homens, quer das coisas. Se não se queixa das provas,
tampouco deve queixar-se dos que lhe servem de instrumento.
Se, em vez de
se queixar, agradece a Deus o experimentá-lo, deve também agradecer a mão que lhe
dá ensejo de demonstrar a sua paciência e a sua resignação. Esta idéia o dispõe
naturalmente ao perdão. Sente, além disso, que quanto mais generoso for. tanto mais se
engrandece aos seus próprios olhos e se põe fora do alcance dos dardos do seu inimigo. O
homem que no mundo ocupa elevada posição não se julga ofendido com os insultos daquele
a quem considera seu inferior. O mesmo se dá com o que, no mundo moral, se eleva acima da
humanidade material. Este compreende que o ódio e o rancor o aviltariam e rebaixariam.
Ora, para ser superior ao seu adversário, preciso é que tenha a alma maior, mais nobre,
mais generosa do que a desse último.
5. Ainda
outros motivos tem o espírita para ser indulgente com os seus inimigos. Sabe ele,
primeiramente, que a maldade não é um estado permanente dos homens; que ela decorre de
uma imperfeição temporária e que, assim como a criança se corrige dos seus defeitos, o
homem mau reconhecerá um dia os seus erros e se tornará bom.
Sabe também
que a morte apenas o livra da presença material do seu inimigo, pois que este o pode
perseguir com o seu ódio, mesmo depois de haver deixado a Terra; que, assim, a vingança,
que tome, falha ao seu objetivo, visto que, ao contrário, tem por efeito produzir maior
irritação, capaz de passar de uma existência a outra. Cabia ao Espiritismo demonstrar,
por meio da experiência e da lei que rege as relações entre o mundo visível e o mundo
invisível, que a expressão: extinguir o ódio com o sangue é radicalmente falsa,
que a verdade é que o sangue alimenta o ódio, mesmo no além-túmulo. Cabia-lhe,
portanto, apresentar uma razão de ser positiva e uma utilidade prática ao perdão e ao
preceito do Cristo: Amai os vossos inimigos. Não há coração tão perverso que,
mesmo a seu mau grado, não se mostre sensível ao bom proceder. Mediante o bom
procedimento, tira-se, pelo menos, todo pretexto às represálias, podendo-se até fazer
de um inimigo um amigo, antes e depois de sua morte. Com um mau proceder, o homem irrita o
seu inimigo, que então se constitui instrumento de que a justiça de Deus se serve
para punir aquele que não perdoou.
6. Pode-se,
portanto, contar inimigos assim entre os encarnados, como entre os desencarnados. Os
inimigos do mundo invisível manifestam sua malevolência pelas obsessões e subjugações
com que tanta gente se vê a braços e que representam um gênero de provações, as
quais, como as outras, concorrem para o adiantamento do ser, que, por isso; as deve
receber com resignação e como conseqüência da natureza inferior do globo terrestre. Se
não houvesse homens maus na Terra, não haveria Espíritos maus ao seu derredor. Se,
conseguintemente, se deve usar de benevolência com os inimigos encarnados, do mesmo modo
se deve proceder com relação aos que se acham desencarnados.
Outrora,
sacrificavam-se vítimas sangrentas para aplacar os deuses infernais, que não eram senão
os maus Espíritos. Aos deuses infernais sucederam os demônios, que são a mesma coisa. O
Espiritismo demonstra que esses demônios mais não são do que as almas dos homens
perversos, que ainda se não despojaram dos instintos materiais; que ninguém logra
aplacá-los, senão mediante o sacrifício do ódio existente, isto é, pela caridade; que
esta não tem por efeito, unicamente, impedi-los de praticar o mal e, sim, também o de os
reconduzir ao caminho do bem e de contribuir para a salvação deles. E assim que o
mandamento: Amai os vossos inimigos não se circunscreve ao âmbito acanhado da
Terra e da vida presente; antes, faz parte da grande lei da solidariedade e da
fraternidade universais.
Se alguém vos bater na face direita, apresentai-lhe também a outra
7. Aprendestes
que foi dito: olho por olho e dente por dente. - Eu, porém, vos digo que não resistais
ao mal que vos queiram fazer; que se alguém vos bater na face direita, lhe apresenteis
também a outra; - e que se alguém quiser pleitear contra vós, para vos tomar a
túnica, também lhes entregueis o manto; - e que se alguém vos obrigar a caminhar mil
passos com ele, caminheis mais dois mil. - Dai àquele que vos pedir e não repilais
aquele que vos queira tomar emprestado. (S. MATEUS, cap. V, vv.
8. Os
preconceitos do mundo sobre o que se convencionou chamar "ponto de honra"
produzem essa suscetibilidade sombria, nascida do orgulho e da exaltação da
personalidade, que leva o homem a retribuir uma injúria com outra injúria, uma ofensa
com outra, o que é tido como justiça por aquele cujo senso moral não se acha acima do
nível das paixões terrenas. Por isso é que a lei moisaica prescrevia: olho por olho,
dente por dente, de harmonia com a época
Dever-se-á,
entretanto, tomar ao pé da letra aquele preceito? Tampouco quanto o outro que manda se
arranque o olho, quando for causa de escândalo. Levado o ensino às suas últimas
conseqüências, importaria ele em condenar toda repressão, mesmo legal, e deixar livre o
campo aos maus, isentando-os de todo e qualquer motivo de temor. Se se lhes não pusesse
um freio as agressões, bem depressa todos os bons seriam suas vítimas. O próprio
instinto de conservação, que é uma lei da Natureza, obsta a que alguém estenda o
pescoço ao assassino. Enunciando, pois, aquela máxima, não pretendeu Jesus interdizer
toda defesa, mas condenar a vingança. Dizendo que apresentemos a outra face
àquele que nos haja batido numa, disse, sob outra forma, que não se deve pagar o mal com
o mal; que o homem deve aceitar com humildade tudo o que seja de molde a lhe abater o
orgulho; que maior glória lhe advém de ser ofendido do que de ofender, de suportar
pacientemente uma injustiça do que de praticar alguma; que mais vale ser enganado do que
enganador, arruinado do que arruinar os outros. E, ao mesmo tempo, a condenação do
duelo, que não passa de uma manifestação de orgulho. Somente a fé na vida futura e na
justiça de Deus, que jamais deixa impune o mal, pode dar ao homem forças para suportar
com paciência os golpes que lhe sejam desferidos nos interesses e no amor-próprio. Daí
vem o repetirmos incessantemente: Lançai para diante o olhar; quanto mais vos elevardes
pelo pensamento, acima da vida material, tanto menos vos magoarão as coisas da Terra.
A vingança
Fora, pois,
com esses costumes selvagens! Fora com esses processos de outros tempos! Todo espírita
que ainda hoje pretendesse ter o direito de vingar-se seria indigno de figurar por mais
tempo na falange que tem como divisa: Sem caridade não há salvação! Mas, não,
não posso deter-me a pensar que um membro da grande família espírita ouse jamais, de
futuro, ceder ao impulso da vingança, senão para perdoar. - Júlio Olivier. (Paris,
1862.)
10. Amai-vos
uns aos outros e sereis felizes. Tomai sobretudo a peito amar os que vos inspiram
indiferença, ódio, ou desprezo. O Cristo, que deveis considerar modelo, deu-vos o
exemplo desse devotamento, Missionário do amor, ele amou até dar o sangue e a vida por
amor, Penoso vos é o sacrifício de amardes os que vos ultrajam e perseguem; mas,
precisamente, esse sacrifício é que vos torna superiores a eles. Se os odiásseis, como
vos odeiam, não valeríeis mais do que eles. Amá-los é a hóstia imácula que ofereceis
a Deus na ara dos vossos corações, hóstia de agradável aroma e cujo perfume lhe sobe
até o seio. Se bem a lei de amor mande que cada um ame indistintamente a todos os seus
irmãos, ela não couraça o coração contra os maus procederes; esta é, ao contrário,
a prova mais angustiosa, e eu o sei bem, porquanto, durante a minha última existência
terrena, experimentei essa tortura. Mas Deus lá está e pune nesta vida e na outra os que
violam a lei de amor. Não esqueçais, meus queridos filhos, que o amor aproxima de Deus a
criatura e o ódio a distancia dele. - Fénelon, (Bordéus, 1861.)
11. Só é
verdadeiramente grande aquele que, considerando a vida uma viagem que o há de conduzir a
determinado ponto, pouco caso faz das asperezas da jornada e não deixa que seus passos se
desviem do caminho reto. Com o olhar constantemente dirigido para o termo a alcançar,
nada lhe importa que as urzes e os espinhos ameacem produzir-lhe arranhaduras; umas e
outros lhe roçam a epiderme, sem o ferirem, nem impedirem de prosseguir na caminhada.
Expor seus dias para se vingar de uma injúria é recuar diante das provações da vida,
é sempre um crime aos olhos de Deus; e, se não fôsseis, como sois, iludidos pelos
vossos prejuízos, tal coisa seria ridícula e uma suprema loucura aos olhos dos homens.
Há crime no
homicídio em duelo; a vossa própria legislação o reconhece. Ninguém tem o direito, em
caso algum, de atentar contra a vida de seu semelhante: é um crime aos olhos de Deus, que
vos traçou a linha de conduta que tendes de seguir. Nisso, mais do que em qualquer outra
circunstância, sois juizes em causa própria. Lembrai-vos de que somente vos será
perdoado, conforme perdoardes; pelo perdão vos acercais da Divindade, pois a clemência e
irmã do poder. Enquanto na Terra correr uma gota de sangue humano, vertida pela mão dos
homens, o verdadeiro reino de Deus ainda se não terá implantado aí, reino de paz e de
amor, que há de banir para sempre do vosso planeta a animosidade, a discórdia, a guerra.
Então, a palavra duelo somente existirá na vossa linguagem como longínqua e vaga
recordação de um passado que se foi. Nenhum outro antagonismo existirá entre os homens,
afora a nobre rivalidade do bem. - Adolfo, bispo de Argel. (Marmande, 1861.)
12. Em certos
casos, sem dúvida, pode o duelo constituir uma prova de coragem física, de desprezo pela
vida, mas também é, incontestavelmente, uma prova de covardia moral, como o suicídio. O
suicida não tem coragem de enfrentar as vicissitudes da vida; o duelista não tem a de
suportar as ofensas, Não vos disse o Cristo que há mais honra e valor em apresentar a
face esquerda aquele que bateu na direita, do que em vingar uma injúria? Não disse ele a
Pedro, no jardim das Oliveiras: "Mete a tua espada na bainha, porquanto aquele que
matar com a espada perecerá pela espada?" Assim falando, não condenou, para sempre,
o duelo? Efetivamente, meus filhos, que é essa coragem oriunda de um gênio violento, de
um temperamento sangüíneo e colérico, que ruge à primeira ofensa? Onde a grandeza
dalma daquele que, à menor injúria, entende que só com sangue a poderá lavar?
Ah! que ele trema! No fundo da sua consciência, uma voz lhe bradará sempre: Caim! Caim!
que fizeste de teu irmão? Foi-me necessário derramar sangue para salvar a minha honra,
responderá ele a essa voz, Ela, porem, retrucará: Procuraste salvá-la perante os
homens, por alguns instantes que te restavam de vida na Terra, e não pensaste em
salvá-la perante Deus! Pobre louco! Quanto sangue exigiria de vós o Cristo, por todos os
ultrajes que recebeu! Não só o feristes com os espinhos e a lança, não só o pregastes
num madeiro infamante, como também o fizestes ouvir, em meio de sua agonia atroz, as
zombarias que lhe prodigalizastes, Que reparação a tantos insultos vos pediu ele? O
último brado do cordeiro foi unia súplica em favor dos seus algozes! Oh! como ele,
perdoai e oral pelos que vos ofendem.
Amigos,
lembrai-vos deste preceito: "Amai-vos uns aos outros" e, então, a um golpe
desferido pelo ódio respondereis com um Sorriso, e ao ultraje com o perdão. O mundo, sem
dúvida, se levantará furioso e vos tratará de covardes; erguei bem alto a fronte e
mostrai que também ela se não temeria de cingir-se de espinhos, a exemplo do Cristo,
mas, que a vossa mão não quer ser cúmplice de um assassínio autorizado por falsos ares
de honra, que, entretanto, não passa de orgulho e amor-próprio. Dar-se-á que, ao
criar-vos, Deus vos outorgou o direito de vida e de morte, uns sobre os outros? Não, só
à Natureza conferiu ele esse direito, para se reformar e reconstruir; quanto a vós, não
permite, sequer, que disponhais de vós mesmos. Como o suicida, o duelista se achará
marcado com sangue, quando comparecer perante Deus, e a um e outro o Soberano Juiz reserva
rudes e longos castigos. Se ele ameaçou com a sua justiça aquele que disser raca a
seu irmão, quão mais severa não será a pena que comine ao que chegar à sua presença
com as mãos tintas do sangue de seu irmão! - Santo Agostinho. (Paris, 1862.)
13. O duelo,
como o que outrora se denominava o juízo de Deus, é uma das instituições bárbaras que
ainda regem a sociedade. Que diríeis, no entanto, se vísseis dois adversários
mergulhados em água fervente ou submetidos ao contacto de um ferro em brasa, para ser
dirimida a contenda entre eles, reconhecendo-se estar a razão com aquele que melhor
sofresse a prova? Qualificaríeis de insensatos esses costumes, não é exato? Pois o
duelo é coisa pior do que tudo isso. Para o duelista destro, é um assassínio praticado
a sangue frio, com toda a premeditação que possa haver, uma vez que ele está certo da
eficácia do golpe que desfechará. Para o adversário, quase certo de sucumbir em virtude
de sua fraqueza e inabilidade, é um suicídio cometido com a mais fria reflexão, Sei que
muitas vezes se procura evitar essa alternativa igualmente criminosa, confiando ao acaso a
questão: - mas, não é isso voltar, sob outra forma, ao juízo de Deus, da Idade Média?
E nessa época infinitamente menor era a culpa.
A própria denominação de juízo de Deus indica a
fé, ingênua, é verdade, porém, afinal, fé na justiça de Deus, que não podia
consentir sucumbisse um inocente, ao passo que, no duelo, tudo se confia à força bruta,
de tal sorte que não raro é o ofendido que sucumbe.
Ó estúpido
amor-próprio, tola vaidade e louco orgulho, quando sereis substituídos pela caridade
cristã, pelo amor do próximo e pela humildade que o Cristo exemplificou e preceituou?
Só quando isso se der desaparecerão esses preceitos monstruosos que ainda governam os
homens, e que as leis são impotentes para reprimir, porque não basta interditar o mal e
prescrever o bem; é preciso que o princípio do bem e o horror ao mal morem no coração
do homem. - Um Espírito protetor. (Bordéus, 1861.)
14. Que juízo farão de mim, costumais dizer, se eu recusar a
reparação que se me exige, ou se não a reclamar de quem me ofendeu? Os loucos, como
vós, os homens atrasados vos censurarão; mas, os que se acham esclarecidos pelo facho do
progresso intelectual e moral dirão que procedeis de acordo com a verdadeira sabedoria.
Refleti um pouco. Por motivo de uma palavra dita às vezes impensadamente, ou inofensiva,
vinda de um dos vossos irmãos, o vosso orgulho se sente ferido, respondeis de modo acre e
daí uma provocação. Antes que chegue o momento decisivo, inquiris de vós mesmos se
procedeis como cristãos? Que contas ficareis devendo à sociedade, por a privardes de um
de seus membros? Pensastes no remorso que vos assaltará, por haverdes roubado a uma
mulher o marido, a uma mãe o filho, ao filho o pai que lhes servia de amparo? Certamente,
o autor da ofensa deve uma reparação; porém, não lhe será mais honroso dá-la
espontaneamente, reconhecendo suas faltas, do que expor a vida daquele que tem o direito
de se queixar? Quanto ao ofendido, convenho em que, algumas vezes, por ele achar-se
gravemente ferido, ou em sua' pessoa, ou nas dos que lhe são mais caros, não está em
jogo somente o amor-próprio: o coração se acha magoado, sofre.
Mas, além de
ser estúpido arriscar a vida, lançando-se contra um miserável capaz de praticar
infâmias, dar-se-á que, morto este, a afronta, qualquer que seja, deixa de existir? Não
é exato que o sangue derramado imprime retumbância maior a um fato que, se falso, cairia
por si mesmo, e que, se verdadeiro, deve ficar sepultado no silêncio? Nada mais restará,
pois, senão a satisfação da sede de vingança. Ah! triste satisfação que quase sempre
dá lugar, já nesta vida, a causticantes remorsos. Se é o ofendido que sucumbe, onde a
reparação?
Quando a
caridade regular a conduta dos homens, eles conformarão seus atos e palavras a esta
máxima: Não façais aos outros o que não quiserdes que vos façam." Em se
verificando isso, desaparecerão todas as causas de dissensões e, com elas, as dos duelos
e das guerras, que são os duelos de povo a povo. - Francisco Xavier, (Bordéus,
1861.)
15. O homem
do mundo, o homem venturoso, que por uma palavra chocante, uma coisa ligeira, joga a vida
que lhe veio de Deus, joga a vida do seu semelhante, que só a Deus pertence, esse é cem
vezes mais culpado do que o miserável que, impelido pela cupidez, algumas vezes pela
necessidade, se introduz numa habitação para roubar e matar os que se lhe opõem aos
desígnios. Trata-se quase sempre de uma criatura sem educação, com imperfeitas noções
do bem e do mal, ao passo que o duelista pertence, em regra, à classe mais culta. Um mata
brutalmente, enquanto que o outro o faz com método e polidez, pelo que a sociedade o
desculpa. Acrescentarei mesmo que o duelista é infinitamente mais culpado do que o
desgraçado que, cedendo a um sentimento de vingança, mata num momento de exasperação.
O duelista não tem por escusa o arrebatamento da paixão, pois que, entre o insulto e a
reparação, dispõe ele sempre de tempo para refletir. Age, portanto, friamente e com
premeditado desígnio; estuda e calcula tu do, para com mais segurança matar o seu
adversário. E certo que também expõe a vida e é isso o que reabilita o duelo aos olhos
do mundo, que nele então só vê um ato de coragem e pouco caso da vida. Mas, haverá
coragem da parte daquele que está seguro de si? O duelo, remanescente dos tempos de
barbárie, em os quais o direito do mais forte constituía a lei, desaparecerá por efeito
de uma melhor apreciação do verdadeiro ponto de honra e à medida que o homem for
depositando fé mais viva na vida futura. -Agostinho. (Bordéus, 1861.)
16. NOTA. Os
duelos se vão tornando cada vez mais raros e, se de tempos a tempos alguns de tão
dolorosos exemplos se dão, o número deles não se pode comparar com o dos que ocorriam
outrora. Antigamente, um homem não saía de casa sem prever um encontro, pelo que tomava
sempre as necessárias precauções. Um sinal característico dos costumes do tempo e dos
povos se nos depara no porte habitual, ostensivo ou oculto, de armas ofensivas ou
defensivas. A abolição de semelhante uso demonstra o abrandamento dos costumes e é
curioso acompanhar-lhes a gradação, desde a época em que os cavaleiros só cavalgavam
bardados de ferro e armados de lança, até a em que uma simples espada à cinta
constituía mais um adorno e um acessório do brasão, do que uma arma de agressão. Outro
indício da modificação dos costumes está em que, outrora, os combates singulares se
empenhavam em plena rua, diante da turba, que se afastava para deixar livre o campo aos
combatentes, ao passo que estes hoje se ocultam. Presentemente, a morte de um homem é
acontecimento que causa emoção, enquanto que, noutros tempos, ninguém dava atenção a
isso. O Espiritismo apagará esses últimos vestígios da barbárie, incutindo nos homens
o espírito de caridade e de fraternidade.